Toda
vez que uma catástrofe abala o planeta — seja a Síria conflagrada, seja
o Japão devastado por um tsunami, seja a região serrana do Rio de
Janeiro arrasada por chuvas e deslizamentos —, a Cruz Vermelha se faz
presente, prestando serviços sustentados por doações vindas de todo o
mundo. Com eficiência e credibilidade, a organização fundada em 1863
pelo suíço Jean Henri Dunant (ganhador da primeira edição do Prêmio
Nobel da Paz, em 1901) e sediada em Genebra, na Suíça, estabeleceu na
prática os direitos e deveres humanos depois consolidados na Convenção
de Genebra, firmou sólida reputação de neutralidade e, assentada em
firme alicerce de respeitabilidade, tornou-se uma máquina eficiente de
arrecadação de doações e recrutamento de voluntários — inclusive no
Brasil, onde completa 100 anos de atividade justamente em 2012. Um
aniversário, infelizmente, tisnado por um triste revés. O Ministério
Público começa a revirar um lamaçal que aponta para o desvio de um
montante de dinheiro de doações à Cruz Vermelha. O valor, ainda não
totalmente conhecido, conta-se na casa dos milhões. Nas últimas quatro
semanas, VEJA entrevistou
conselheiros, funcionários, colaboradores e doadores da Cruz Vermelha,
analisou mais de 1 000 documentos, e a conclusão do trabalho é que os
recursos doados à entidade no Brasil não foram aplicados como pensam os
incautos beneméritos.
VÍTIMAS LESADAS - A tragédia retratada nos deslizamentos na região
serrana do Rio (à esq.), na fome na Somália (acima) e no terremoto
seguido de tsunami no Japão: cumprindo seu papel de prestar apoio e
serviços em situações de emergência, a Cruz Vermelha do Brasil pediu e
recolheu doações, mas nem mesmo os conselheiros da organização
conseguiram ter acesso às contas
No
ano passado, a Cruz Vermelha Brasileira organizou três grandes
campanhas nacionais de arrecadação — uma para as vítimas dos
deslizamentos na região serrana fluminense, que deixaram 35 000
desabrigados; outra para a Somália, país africano faminto e devastado
por guerras civis; e mais uma para a tragédia do terremoto seguido de
tsunami no norte do Japão. Os recursos arrecadados nessas campanhas, com
toda a certeza, não foram aplicados em nenhum daqueles locais. Nem um
único centavo chegou a quem precisava. Nos três casos, as doações foram
encaminhadas para contas bancárias da entidade no Banco do Brasil em São
Luís, no Maranhão. Por que no Maranhão? Não se sabe, mas se suspeita:
1) porque o presidente nacional da Cruz Vermelha, Walmir Moreira Serra
Júnior, mora lá; e 2) porque justamente sua irmã, Carmen Serra, é quem
comanda a filial da Cruz Vermelha maranhense. Sob os argumentos mais
diversos, os irmãos Serra passaram a manter as contas sob sigilo, e nem o
alto escalão da entidade tem informações sobre o montante depositado ou
sobre as movimentações.
Letícia
Del Ciampo: gestora em saúde e presidente da filial de Petrópolis da
Cruz vermelha denunciou desvios em dinheiro doado por brasileiros
Apesar
de insistentes solicitações, a mais recente em uma reunião em Brasília
em 11 de junho, a comissão fiscal da organização no Brasil, secundada
por instâncias superiores, como a Federação Internacional da Cruz
Vermelha, tentou em vão ver o extrato das contas. “As coisas não estão
sendo feitas de forma transparente. Estamos exigindo uma informação, mas
ela nunca vem”, diz o representante da Federação da Cruz Vermelha para a
América do Sul, Gustavo Ramirez, que reuniu e enviou para o Japão o
dinheiro arrecadado nos outros países — menos o do Brasil. Sobre a
campanha para ajudar os famintos da Somália também paira um ponto de
interrogação. “Fizemos parceria com a Cruz Vermelha do Brasil, mas não
sei onde foi parar a parte que eles arrecadaram”, fala com perplexidade o
suíço Felipe Donoso, delegado para Argentina, Brasil, Chile, Uruguai e
Paraguai do Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV).
A
investigação das contas misteriosas, que vinha ocorrendo em
sindicâncias internas, extrapolou o âmbito da organização em fevereiro,
quando Letícia Del Ciampo assumiu o comando do escritório da Cruz
Vermelha em Petrópolis, uma das cidades do Rio de Janeiro devastadas
pelas chuvas do ano passado. Letícia constatou as irregularidades,
reuniu documentos e entrou com duas ações no Ministério Público estadual
— uma contra a Cruz Vermelha da cidade serrana, outra contra a
nacional. Além de constatar que Petrópolis não recebeu um tostão do
dinheiro que foi parar nas contas secretas do Maranhão, ela descobriu
desvios em outras áreas. Ambulâncias novas que deveriam estar servindo a
região nunca apareceram, e as antigas estão sem manutenção há muito
tempo, o que praticamente inutilizou a frota. Há sinais de problemas
também em um convênio feito com o governo do Distrito Federal com o
objetivo de passar à Cruz Vermelha a gestão de uma Unidade de Pronto
Atendimento (UPA) em Brasília. Em 2010, a Cruz Vermelha-Petrópolis
recebeu 3,7 milhões de reais adiantados, mas ela nunca prestou serviço
algum e está sendo cobrada na Justiça pela devolução do dinheiro. “A
Cruz Vermelha brasileira está cometendo crimes contra a humanidade.
Desde que assumi o cargo, o que mais ouvi foram pessoas dizendo que
catástrofes são ótima oportunidade para ganhar dinheiro”, dispara
Letícia.
Outro
foco de irregularidade envolve o escritório do Rio Grande do Sul,
contratado para gerenciar um hospital municipal em Balneário Camboriú,
Santa Catarina. Uma CPI apurou desvios de dinheiro ali e indiciou
dezesseis pessoas no mês passado, entre elas o presidente Moreira Serra e
seu vice, Anderson Choucino. Cerca de 1,5 milhão de reais pagos à Cruz
Vermelha pela prefeitura foram parar nas gulosas contas secretas do
Maranhão. Está cercado de suspeitas também o aluguel de parte do terreno
onde fica o edifício-sede da organização, no Rio de Janeiro. A
intermediação da locação foi entregue à Finance Consultoria, empresa que
ocupa uma sala minúscula em um prédio de Olinda, Pernambuco. A Finance
cobrou 83 milhões de reais pelos serviços prestados. As cifras,
suspeitíssimas, são contestadas por conselheiros da Cruz Vermelha.
O
processo de arrecadação das três campanhas de 2011 já seria em si
motivo para envergonhar os responsáveis pela imagem de uma instituição
patrimônio da humanidade como é a Cruz Vermelha. A Embaixada da África
do Sul destinou 230 000 reais aos desabrigados da serra fluminense e
nunca recebeu um relatório sequer sobre a utilização do dinheiro. VEJA
teve acesso a uma lista de empresas e bancos que juntos doaram cerca de
1,5 milhão de reais para os desabrigados fluminenses. “Não vimos a cor
do dinheiro”, diz Rosely Sampaio, diretora executiva da Cruz Vermelha
carioca. A Cruz Vermelha do Japão registra o recebimento de 164 000
reais para as vítimas do tsunami, mas os recursos eram provenientes
apenas da Cruz Vermelha de São Paulo. O dinheiro arrecadado pelo
escritório nacional foi parar nas contas secretas do Maranhão. A
suspeita é que o dinheiro que deveria ajudar a Somália tenha tido o
mesmo destino — as contas controladas pelos irmãos Serra. Quando a
comissão fiscal da entidade deu um prazo final para que o sumiço do
dinheiro fosse explicado, Moreira Serra, presidente nacional da
entidade, simplesmente extinguiu o órgão fiscalizador. Serra recusou-se
a falar com VEJA. Enquanto no mundo todo a Cruz Vermelha ajuda os
desvalidos, no Brasil é ela que pede socorro.
Fonte: ClickPB
Nenhum comentário:
Postar um comentário
BLOG DO PHILIPE CHAVES, O Blog que te deixa mais atualizado em seu dia-a-dia.